quinta-feira, janeiro 18, 2018

PRISÃO NO NOTURNO

No meu tempo, no qual as pessoas viajavam de trem, tínhamos diversos tipos de trens, que variavam pela carga, horário, rapidez e conforto. Por Itaúna passavam o Subúrbio (esse exclusivo de Itaúna a BH e vice-versa) o Misto, que carregava passageiros e carga, o Expresso, trem diurno com carro restaurante, poucas paradas, para transporte exclusivo de passageiros e o Noturno. Este, mais sofisticado, tinha carro restaurante, cabines com leitos ou carros com poltronas leito e poucas paradas. Somente nas principais cidades. Assim como o Expresso, era mais rápido. Os dois destinavam-se a viagens mais longas.

 O Noturno, que possuía até camareiros, como o próprio nome indica, só viajava a noite. O carro restaurante era algo a parte. Tinha fogão tocado a lenha ou a carvão, cozinheiro e ajudantes, garçons fardados e às vezes " maitre d'hotel “. Cardápio " a la carte". Coisa chique para poucos.  A bordo do trem vendia-se bebidas. Normalmente, cerveja, vinho, vinho do Porto e conhaque. Servidas por garçons fardados e de gravatas borboleta.

Em Itaúna tínhamos dois Juízes de Direito. A comarca já era importante é somente um não era suficiente. Lembro-me bem de vários e a história que passo a narrar é verídica.

Um dos juízes, de nome Nabor, pai de dois grandes amigos meus, era baixinho, quase minúsculo. Empertigado, sempre de terno e gravata, sanguíneo, eternamente cor de rosa. Chegou em Itaúna em fins dos anos cinquenta e começo dos sessenta do século passado. Já chegou viúvo, com três filhos homens e três meninas. Todos bonitos, claros e rosados. Uma coleção de " biscuits". Miúdos como o pai.

O Doutor Nabor, parece-me que tinha uma namorada em Belo Horizonte e viajava sempre para vê-la. Ia e voltava de trem. A volta, sempre de Noturno. Ia me esquecendo. O magistrado era bom de copo e tinha uma voz tonitruante. Fazia inveja a qualquer locutor. Gostava de cerveja da marca "Portuguesa", fabricada pela Antártica em uma fábrica em Belo Horizonte, onde se localiza hoje o Shopping Oiapoque. Cerveja ruim, engarrafada em cascos verdes.

A preferência em Itaúna era da Brahma Chopp, casco escuro. Doutor Nabor ainda tinha uma preferência estranha. Gosta de cerveja sem gelo. Portuguesa quente, casco verde erapra poucos. O próprio " mijo de égua “.

Numa de suas viagens de volta para Itaúna, o magistrado aboletou-se no Noturno e logo que a composição da Rede arrancou, chamou o garçom e fez o pedido: " por favor, uma Portuguesa, casco verde, sem gelo". O serviçal argumentou que não tinha a cerveja. No entanto, se quisesse Brahma, tinha sem gelo, mas casco escuro. O baixinho era tinhoso e sabedor de suas virtudes como autoridade, pediu para falar com o Maitre. Na sua presença o chefe dos garçons usou dos mesmos argumentos e disse mais. A cerveja pedida vendia pouco e daí a falta dela no estoque. Pedia desculpas, mas nada mais poderia fazer.

Em vista do impasse, o Dr. Nabor mandou que viesse falar com ele, nada mais nada menos do que o Chefe do Trem, autoridade máxima do comboio. Na presença do Chefe, devidamente fardado de azul e apito pendurado no pescoço, o baixinho juiz, já alterado, recitou sua ladainha. Nada feito. A chefe nada podia fazer!!!

Doutor Nabor por fim aquiesceu em beber um conhaque. Bebeu vários e já nas imediações de Mateus Leme, estava vermelho como um peru é bem " tocado".

Pediu mais uma dose é o garçom resolveu dizer-lhe que não lhe serviria mais. Já bebera o bastante. O homenzinho virou um capeta. Proferiu impropérios, xingou a mãe do garçom e aprontou um carnaval. O pobre garçom, que teria uma longa noite pela frente, obrigado a equilibrar-se com o balanço do trem, perdeu a paciência e deu uma bofetada no magistrado. Uma só, o bastante para colocá-lo no devido. Com a esfrega, Dr. Nabor aquietou e recolheu-se ao carro de passageiros, depois de pagar a conta.

Surpresa maior, o baixinho reservou para a equipe do trem, assim que a composição estacionou em Itaúna. Investido de sua autoridade de Meritíssimo Juiz, deu voz de prisão ao Chefe do Trem, ao Maitre e ao Garçon. Reteve todo o Noturno da Rede Mineira de Viação em Itaúna, até que se resolvesse o impasse. Tinha sido desacatado e agredido. Queria e obteve lavratura de atos circunstanciais, boletim de ocorrência, coleta de provas e exame de corpo de delito. Atrasou o trem que ia para Cruzeiro/SP, por três horas.

Abuso de autoridade é coisa antiga no Brasil.




Texto: Urtigão (nascido em Rio Piracicaba desde de 1943) é pseudônimo de José Silvério Vasconcelos Miranda, que viveu em Itaúna nas décadas de 50 e 60. Causo verídico enviado especialmente para o blog Itaúna Décadas em 03/01/2018.

Organização: Charles Aquino


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